O abortamento recorrente é um problema delicado e doloroso que afeta muitas mulheres e casais ao redor do mundo. Este termo se refere à ocorrência de pelo menos duas ou três mais perdas gestacionais consecutivas, e pode ser causado por uma série de fatores. Vamos explorar o que significa, suas causas mais comuns e as opções de tratamento disponíveis.
Definição e Frequência
O abortamento é mais comum do que se imagina. Aproximadamente 11% das gestações diagnosticadas na população geral resultam em perda gestacional. Esta porcentagem aumenta com a idade da mulher:
- Menos de 30 anos: 12%
- Entre 30-34 anos: 15%
- Entre 35-39 anos: 25%
- Entre 40-44 anos: 51%
- Mais de 45 anos: 80%
A maior parte dos abortamentos ocorre nas primeiras 12 semanas de gestação. Cerca de 50-80% dos abortamentos no primeiro trimestre são causados por aneuploidias, que são alterações genéticas no número de cromossomos do embrião.
Não existe um consenso sobre a definição de abortamento recorrente na literatura médica. Algumas referências consideram este diagnóstico após dois abortamentos consecutivos, enquanto outras apenas após três perdas gestacionais consecutivas.
Causas de Abortamento Recorrente
As causas do abortamento recorrente são variadas e podem ser difíceis de identificar. Muitas vezes não encontramos uma causa que o justifique, apesar de uma investigação profunda.
As causas identificáveis mais comuns são:
- Anormalidades Cromossômicas
- As aneuploidias, ou anormalidades no número de cromossomos, são uma causa frequente de abortamento. Elas ocorrem devido a erros na divisão celular durante a formação dos óvulos ou espermatozoides.
- A maior parte dos abortamentos recorrentes ocorrem por anormalidades cromossômicas nos embriões, principalmente em mulheres com 35 anos ou mais.
- Casais com abortamento recorrente podem ser portadores de translocações balanceadas, onde partes dos cromossomos trocam de lugar sem afetar a saúde dos pais, mas podem causar problemas nos embriões.
- Malformações Uterinas
- Problemas estruturais no útero, como miomas, malformações uterinas (útero didelfo, útero septado e útero bicorno, entre outros) podem interferir na implantação do embrião e no desenvolvimento da gravidez.
- A Síndrome de Asherman é caracterizada por cicatrizes no útero, geralmente após múltiplas curetagens ou infecções. Ela pode resultar em perdas gestacionais ou, mais frequentemente, em infertilidade. A histeroscopia poderá tratar esta condição.
- Incompetência Istmocervical
- Esta condição ocorre quando o colo do útero se dilata prematuramente sem dor, levando a perdas gestacionais no segundo trimestre.
- Pode ser tratada com cerclagem, que é a colocação de uma sutura para manter o colo do útero fechado.
- Síndrome Antifosfolipídeo (SAF)
- É uma trombofilia autoimune onde anticorpos atacam os próprios tecidos do corpo, aumentando o risco de formação de trombose venosa e arterial.
- Mulheres com SAF têm um risco aumentado de abortamento e outras complicações na gravidez, como óbito fetal, pré-eclâmpsia, crescimento intrauterino restrito.
- O tratamento é feito com aspirina em baixas doses e anticoagulação com enoxaparina durante a gravidez.
- Desordens Endócrinas
- Doenças como diabetes mal controlado e a Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP) podem aumentar o risco de abortamento.
- Tanto hipo quanto hipertireoidismo descontrolados estão associados a perdas gestacionais.
- A insuficiência do corpo lúteo, onde o corpo não produz progesterona suficiente, não possui comprovação científica até o momento.
- Outras condições controversas:
- Trombofilias hereditárias: são condições genéticas que aumentam o risco de trombose, principalmente venosa. Estudos recentes não confirmam a associação entre trombofilias hereditárias e abortamento recorrente.
- Infecções: normalmente estão associadas ao abortamento esporádico, mas não possuem relação com abortamento recorrente.
- Desordens imunológicas: não há estudos convincentes de que a incompatibilidade imunológica entre os pais ou distúrbios de células de defesa (como células NK) aumentariam o risco de abortamento. Além disso, o tratamento destas condições não resultou em uma melhora significativa de nascidos vivos.
Diagnóstico
Antes mesmo da solicitação de exames laboratoriais, uma consulta com um médico especializado para entender as circunstâncias do abortamento poderá fornecer informações cruciais, muitas vezes apontando para uma causa provável. É importante analisar os exames de sangue e imagem realizados durante a perda da gestação e, caso possível, o estudo histopatológico e também genético do abortamento.
Alguns dos testes mais comuns incluem:
- Cariótipo do casal para detectar anormalidades cromossômicas.
- Avaliação anatômica do útero, geralmente por ultrassonografia ou histeroscopia.
- Testes de sangue para detectar SAF (anticoagulante lúpico, anticardiolipina, antibeta2glicoproteína I).
- Investigação para diabetes.
- Avaliação da função da tireoide.
Vale ressaltar que os casos devem ser avaliados individualmente e esta investigação poderá ser modificada de acordo com o quadro clínico apresentado.
Tratamento
O tratamento do abortamento recorrente depende se houver uma causa identificada. Algumas opções de tratamento incluem:
- Fertilização In Vitro (FIV) com Diagnóstico Pré-implantacional
- Cirurgia para Correção de Malformações Uterinas
- Cerclagem
- Tratamento da SAF (anticoagulação, aspirina)
- Controle de Problemas Endócrinos
Em uma grande parte dos casos, no entanto, não há necessidade de tratamento, visto que a perda gestacional foi associada a um erro genético (aneuploidia) inerente ao próprio embrião.
Esperança e Sucesso
Apesar das dificuldades, muitas mulheres com histórico de abortamento recorrente podem ter uma gravidez bem-sucedida. Estudos mostram que, mesmo para mulheres com três ou mais abortamentos, a chance de sucesso em uma gravidez futura é alta, especialmente com o acompanhamento obstétrico adequado.
Conclusão
O abortamento recorrente é uma condição complexa e dolorosa para o casal, mas com acompanhamento obstétrico adequado muitas mulheres podem alcançar uma nova gravidez saudável. É importante buscar ajuda médica especializada para orientar uma investigação adequada e melhor abordagem para cada caso.
Referências:
Royal College of Obstetricians and Gynaecologists – Recurrent Miscarriage Green-top Guideline No. 17.